Campanha da tinha em Portugal
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A campanha da tinha em Portugal aborda as iniciativas tomadas nas décadas de 50-60, em Portugal, para a erradicação desta infeção fúngica que constituiu um verdadeiro flagelo social. O tratamento utilizado envolveu a aplicação de raios X no couro cabeludo, sendo importante avaliar, no presente, possíveis efeitos secundários dessa irradiação.
Epidemiologia da doença
editarA tinha constituiu um problema sanitário em Portugal, que só na década de cinquenta, começou realmente a impressionar a população e, consequentemente, os organismos de assistência e as autoridades a quem competia a defesa da saúde pública [1]. Devido à sua elevada prevalência na população infantil chegou a constituir um verdadeiro flagelo social [2].
O diagnóstico da tinha era feito com base na demonstração microscópica do fungo, já que o exame direto dos cabelos parasitados não identificava a espécie de fungo, mas apenas o seu género [3]. Um método auxiliar de diagnóstico, que se revelava de grande utilidade, era a utilização da luz de Wood [3, 4]. Consistia numa fonte de radiação ultravioleta que produzia a fluorescência da pele e cabelos parasitados, fluorescência que variava consoante a espécie de fungo [3]. A incidência da tinha aumentava gradualmente da infância até à idade escolar, decrescendo abruptamente na puberdade [5, 6].
Nos inquéritos que realizou em 13 concelhos do Norte, observando 76 427 crianças das escolas, Aureliano da Fonseca identificou 3169 casos de tinha, com prevalências que variavam entre 0,4 e 12,6%, tendo encontrado as frequências mais elevadas nas zonas costeiras, como foi o caso da Póvoa e de Vila do Conde [2, 7, 8]. O agente etiológico mais comum em Portugal, na década de 50-60, era o Trichophyton violaceum (60% dos casos), seguido pelo Trichophyton schoenleinii (15%), Trichophyton tonsurans (14%) e Microsporum canis (10%) [9]. Uns anos mais tarde, esta sequência apresentava ligeiras alterações, sendo as 4 espécies mais frequentes, por ordem de prevalência, Trichophyton violaceum, Microsporum canis, Trichophyton tonsurans e Trichophyton schoenleinii [10, 11].
A tinha favosa era causada pelo Trichophyton schoenleinii, sendo mais frequente no Norte de Portugal, onde as condições socioeconómicas eram mais deficitárias [12]; a tinha tricofítica era causada por várias espécies do género Trichophyton, e a tinha microspórica era causada principalmente pelas espécies Microsporum canis e Microsporum felineum [13]. Os casos eram mais comuns nas classes mais desfavorecidas, associados a deficientes condições de higiene, que facilitavam a propagação desta doença altamente contagiosa [14, 15]. A transmissão era inter-humana para a maior parte dos fungos (a tinha microspórica era essencialmente transmitida por animais como os gatos e os cães), podendo ocorrer através de diversos objetos contaminados, como pentes, bonés, vestuário.
Tratamento da doença
editarO tratamento era local, feito com diversos cremes e pomadas (ex: tintura de iodo, pomada à base de enxofre, pomada de salicilanilida) que não se mostravam capazes de eliminar o problema em tempo útil. Em virtude dos micélios do fungo penetrarem profundamente no folículo piloso, compreende-se a dificuldade de conseguir que qualquer produto fungicida atingisse a profundidade necessária e fosse capaz de entrar no próprio pêlo [3, 8, 16]. Em virtude desta situação, para curar a tinha, havia a necessidade de fazer a depilação de todos os cabelos parasitado, para evitar que estes continuassem a crescer, mantendo a cronicidade da doença. A depilação tinha um papel relevante no tratamento da tinea capitis, em associação com os medicamentos tópicos então utilizados. Foi realizada de acordo com o método de Kienboch-Adamson (ou dos 5 campos) - marcavam-se cinco pontos no couro cabeludo, sendo aplicada, a cada um deles, uma dose de radiação de 300-400 Roentgen (R) [17, 18]. O cabelo caía normalmente cerca de 15 dias após a irradiação e nascia entre 45 a 75 dias após a sessão de raios X [19]. Os agentes causais da tinha não eram destruídos pelos raios X.
Para o estabelecimento do critério de cura era aconselhada a suspensão de qualquer tipo de tratamento quando já não existissem sintomas da doença [11]. Após um período de quinze dias, durante os quais não se aplicava qualquer tratamento ou medida de limpeza do local afectado, realizava-se o exame clínico e parasitológico. Se este exame não revelasse alteração, aguardava-se um novo período de quinze dias, antes de se dar o caso como curado.
No Norte de Portugal a campanha de luta contra a tinha iniciou-se no antigo Dispensário Central de Higiene Social do Porto (DCHSP). A iniciativa foi realizada com a colaboração de todos os médicos, tendo abrangido toda a área costeira, desde o concelho de Viana do Castelo até à proximidade de Ovar, através de visitas epidemiológicas às escolas. Quando a Direção Geral de Saúde tomou conhecimento da extensão da doença, foram criadas Brigada Móveis de luta contra a tinea capitis, dada a grande expansão da doença e a existência de focos importantes no nosso país [2, 7]. Esta Brigada Móvel era constituída por uma pequena camioneta fechada, com motorista, transportando um aparelho de roentgenterapia, um médico, uma enfermeira, uma auxiliar e um visitadora social. Os diagnósticos eram confirmados por exame micológico directo feito na mesma camionete. A introdução na terapêutica de um antimicótico que podia ser tomado por via oral – a griseofulvina - dispensando a epilação do couro cabeludo, representou um grande melhoramento no tratamento da tinha. A griseofulvina começou a ser ensaiada na clínica humana em 1958 [20]. Apenas o custo elevado deste agente terapêutico justificou que a roentgenterapia não fosse abandonada de imediato e se tivesse mantido ainda no início dos anos sessenta [21].
Possíveis efeitos secundários da epilação por raios-X (roentgenterapia)
editarA epilação por raios-X como adjuvante do tratamento da tinea capitis foi um método utilizado em vários países. Os possíveis efeitos secundários da roentgenterapia começaram a ser investigados desde há muito tempo, nomeadamente na coorte de Israel [22], tendo-se observado, ao longo dos anos, um aumento de vários tumores da zona da cabeça e pescoço, nomeadamente o carcinoma da tiroide [23] e um tipo de carcinoma de pele, o carcinoma basocelular [24].
Desde 2006 que se iniciou no IPATIMUP (Instituto de Patologia e Imunologia Molecular da Universidade do Porto) a busca e estudo da coorte de pessoas tratadas no antigo DCHSP [25]. Foram observadas cerca de 1300 pessoas, a partir de um registo que abrangia 5356, a maioria submetida ao tratamento na infância, em idade escolar (6-12 anos). O registo incluía também o diagnóstico da tinea capitis realizado na altura. Graças a isso foi possível constatar que o diagnóstico de tinha favosa aumentou em 8 vezes o risco do aparecimento de alopecia definitiva (perda total do cabelo) nas mulheres observadas [26]. A tinha favosa, se não tratada atempadamente, podia causar alopecia definitiva [2].
Nestas 1300 pessoas observou-se uma frequência elevada do carcinoma da tiroide [25, 27], e do carcinoma basocelular [28], tal como havia sido descrito noutras coortes de pessoas irradiadas para o tratamento da tinea capitis, nomeadamente na de Israel. A quase totalidade destas pessoas não tinha conhecimento da natureza do tratamento a que tinha sido submetida na infância, e por esse motivo, nunca tinha mencionado a situação ao seu médico assistente [27].
Outro possível efeito secundário da epilação por raios-X, recentemente descrito na coorte de Israel, é o aumento do risco de arteriosclerose das carótidas [29], que está a ser estudado na coorte portuguesa.
Bibliografia
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