A Galeria Uffizi, em Florença, abriga uma das mais prestigiosas e singulares coleções de autorretratos do mundo, testemunho eloquente da evolução histórica e estética do gênero. Este acervo não se limita a oferecer um inventário visual das grandes figuras da arte europeia, mas também revela um diálogo íntimo entre o artista e a representação de si mesmo, imbuído de autopercepção, identidade e posição social. Ao longo dos séculos, a coleção expandiu-se significativamente, incorporando desde mestres renascentistas, como Rembrandt e Velázquez, até modernistas como Marc Chagall, demonstrando a transformação do autorretrato de um símbolo de prestígio à exploração psicológica e existencial do "eu"[1][2].
O primeiro núcleo da coleção de autorretratos da Galeria Uffizi foi fruto de uma feliz intuição do CardealLeopoldo de Médici.[3][4]. Mais do que um espaço de exibição, constitui-se em um campo de reflexão sobre o papel do autor como sujeito e objeto. Cada autorretrato torna-se um veículo de auto-afirmação e, muitas vezes, de comentário metapictórico, ao mesmo tempo em que reflete o contexto artístico, cultural e social do momento em que foi produzido. Em cada pincelada, delineia-se a tensão entre a verdade interior e a conformidade exterior, um jogo que remete ao questionamento filosófico sobre a veracidade da imagem e o poder da representação[5].
Dentro da tradição do mecenatoflorentino, a coleção de autorretratos dos Uffizi destaca-se não apenas por seu escopo cronológico e geográfico, mas também por representar a mudança gradual no status do artista. No Renascimento, o artista, outrora um simples artesão, alcança o estatuto de gênio criador, e os autorretratos desta época refletem essa nova autoconfiança. No entanto, à medida que a modernidade avança, o autorretrato torna-se uma arena para a introspecção e o questionamento identitário, como se observa nos trabalhos de artistas do século XIX e XX. A Galeria Uffizi, com sua coleção de mais de 1.800 autorretratos, não apenas preserva a memória desses criadores, mas também estimula a contínua reflexão sobre a natureza da criação artística e sua profunda relação com a autorrepresentação.
Dentro do complexo da Galeria Uffizi, esta enorme coleção é exposta no chamado Corredor Vasari, principalmente. O famoso museu inclui obras em diversos suportes e apresentações, tais como: pinturas, esculturas e desenhos, e mais recentemente instalações.[6][3]
Essa coleção não apenas documenta a evolução do autorretrato como forma artística, mas também oferece uma perspectiva sobre as condições sociais e culturais que influenciaram os artistas em diferentes épocas e regiões. Destaca-se não apenas pela quantidade e qualidade das obras, mas também pela sua capacidade de proporcionar uma visão multifacetada da evolução da subjetividade artística e das condições de produção artística ao longo do tempo. Ao preservar e exibir essas obras, a Galeria Uffizi mantém viva a tradição do autorretrato, afirmando seu papel como um dos principais centros de preservação e estudo da história da arte no mundo.[7][8].
Esta vastíssima coleção, evidentemente, não pode ser apresentada toda de uma única vez por questões operacionais e de espaço da própria galeria. Em um comunicado de 10 de julho de 2023 a Uffizi informa:
Muitas obras não são encontradas no Corredor Vasari, mas foram retiradas dos depósitos do museu, onde antes eram prerrogativa de alguns estudiosos. Para realçar as muitas faces deste imenso acervo, o Uffizi observará o princípio da rotação de exposições, nomeadamente no que diz respeito aos artistas vivos, mas não só. Critério semelhante - mas neste caso também ligado a necessidades essenciais de conservação - aplicar-se-á a todas as obras gráficas, expostas num enclave de duas magníficas salas decoradas no século XIX por Luigi Ademollo.[9]
O Grão-Duque da Toscana, Cosme III de Médici, ordenou a instalação de salas na Galeria Uffizi para abrigar a coleção de autorretratos de seu tio, o cardeal Leopoldo de Médici, falecido em 1675[11].
A história dos autorretratos é recente.[12] Em meados do século XVI, os Médici começaram a colecioná-los, mas de forma extemporânea, solicitando artistas cujos patronos eram, ou recorrendo a especialistas e curadores, ou diplomatas florentinos. Giambattista della Porta publicou Della fisionomia dell'omo, em 1586, texto que deu novo impulso à moda de definir-se explicitamente em uma única obra pictórica; já que o autorretrato às vezes era um quebra-cabeça de decifrar, colocado dentro de uma obra maior.
Organizada cronologicamente, a exposição traça um percurso que inicia com os autorretratos dos Gaddi[13] no século XV e culmina em peças modernas, como as instalações de Antony Gormley e Bill Viola, além das esculturas de Ai Weiwei. A narrativa expositiva privilegia 255 obras que ilustram as múltiplas abordagens ao gênero do autorretrato ao longo dos séculos, apresentando figuras emblemáticas como Rembrandt, Rubens, Rosalba Carriera, Eugène Delacroix e Élisabeth Chaplin[14].
Cada período revela uma atitude distinta em relação à identidade e à representação artística: os italianos optam por uma introspecção intimista, enquanto os nórdicos destacam o orgulho profissional e os franceses exibem a sofisticação aristocrática. Um marco da exposição é o autorretrato de Anne Seymour Damer, de 1778, que desafia as convenções de gênero ao inscrever-se em caracteres gregos, afirmando sua cultura e posição como escultora em um universo majoritariamente masculino[15].
A Galeria Uffizi, portanto, não apenas preserva, mas também recontextualiza essa vasta coleção de autorretratos, configurando-se como um espaço de reflexão sobre a evolução da autorrepresentação na história da arte.
↑Bertini, Daniele. Autoritratto e Collezionismo: Leopoldo de' Medici e la nascita della collezione degli autoritratti agli Uffizi. Firenze: S.P.E.S., 2001
↑Stoichita, Victor I. The Self-Aware Image: An Insight into Early Modern Meta-Painting. Cambridge: Cambridge University Press, 1997.
↑Wolfram Prinz et et autres, « La collezione di autoritratti : Catalogo generale », dans Gallerie degli Uffizi, Gli Uffizi, Florence, Centro Di, 1980 (1re éd. 1979), 1211 p. (ISBN 88-7038-021-1), p. 765-1044
↑Hall, James. The Self-Portrait: A Cultural History. London: Thames & Hudson, 2014
↑Stoichita, Victor I. The Self-Aware Image: An Insight into Early Modern Meta-Painting. Cambridge: Cambridge University Press, 1997
↑A família Gaddi foi uma importante dinastia de artistas italianos que desempenhou um papel fundamental no desenvolvimento da arte florentina no final da Idade Média e início do Renascimento. Entre seus membros mais destacados estão Gaddo Gaddi, Agnolo Gaddi e Taddeo Gaddi
↑Farinella, Vincenzo. Autoritratti: Storia di una Collezione. Firenze: Giunti, 2010
↑Hall, James. The Self-Portrait: A Cultural History. London: Thames & Hudson, 2014
↑A Uffizi possui outro autorretrato do mesmo autor, datado de 1877.
↑Um autorretrato de corpo inteiro, anteriormente atribuído a Teresa Arizzara, acabou por ser obra de Irene Parenti Duclos, de quem a Coleção também possui outro autorretrato.
↑No inventário de 1769 é considerada obra de pessoa anônima. O autor foi identificado em 1825, por analogia com o outro retrato de Bandinelli, preservado na Galeria Uffizi, ao qual foi dada a data incerta 1525-1530?
↑Identificado como um autorretrato de Elisabetta Sirani - cujo autorretrato, desenhado em papel com giz preto e giz vermelho, está no Gabinetto dei Desenhos e Gravuras da Galeria Uffizi - foi então atribuído a Casalini Torelli, em comparação com outro autorretrato seu, existente na Biblioteca Universitária de Bolonha. Outro autorretrato seu, cerca de oito anos depois, entrou na Galeria Uffizi com a coleção Pazzi.
↑A atribuição do chamado autorretrato é muito duvidosa. A pintura não apresenta o estilo fino e detalhado típico de Elsheimer. Bruhns, Leo (1957). Deutsche Künstler in Selbstdarstellungen (em alemão). Königstein im Taunus: Karl Robert Langewiesche Verlag. p. 45
↑Realizado aos 19 anos, mas pode ser uma reprise posterior. Seus outros autorretratos estão em museus de Antuérpia, Bruxelas e Ostende.
Bice Viallet, Gli autoritratti femminili delle RR. Gallerie degli Uffizi in Firenze, Roma, Alfieri & Lacroix, 1923, SBN IT\ICCU\CUB\0662501.
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Gallerie degli Uffizi, Gli Uffizi: Catalogo generale, Firenze, Centro Di, 1980, pp. 765-1044 [1979], SBN IT\ICCU\RAV\0060995.
Gallerie degli Uffizi, Autoritratti dagli Uffizi: da Andrea del Sarto a Chagall: Accademia di Francia, Roma, 1 marzo-15 aprile 1990-Galleria degli Uffizi, Firenze, 12 settembre-28 ottobre 1990, Firenze, Galleria degli Uffizi, 1990, SBN IT\ICCU\UFI\0062879.
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Giovanna Giusti Galardi, Autoritratte: artiste di "capriccioso e destrissimo ingegno". Galleria degli Uffizi, "Mai visti", Firenze, Polistampa, 2010, SBN IT\ICCU\MOD\1580320.
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