Direitos sexuais e direitos reprodutivos
Direitos sexuais e direitos reprodutivos são dois conjuntos de direitos que, de um lado devem ser entendidos de forma separada, por outro estão intimamente ligados e se complementam. Os dois conjuntos de direitos pertencem aos direitos humanos e têm como base os mesmos princípios que são universalidade, indivisibilidade e interdependência.[1]
O reconhecimento desses direitos como direitos humanos implica o reconhecimento de que a sexualidade e a reprodução humanas necessitam de um conjunto de normas jurídicas para a sua promoção e implementação, assim como de políticas públicas desenvolvidas pelo Estado que assegurem a saúde para o exercício de tais direitos, ou seja, a saúde sexual e a saúde reprodutiva de cidadãs e cidadãos de uma determinada sociedade.[2][3]
Assim como os direitos humanos, os direitos sexuais e reprodutivos são direitos em construção e historicamente construídos.
O conceito de direitos reprodutivos refere-se a um conjunto de normas e leis referentes à autonomia de homens e mulheres para decidir se querem ou não ter filhos e o tamanho de sua prole, bem como quando desejam reproduzir.[2]
Segundo Flávia Piovesan: “trata-se de direito de auto-determinação, privacidade, intimidade, liberdade e autonomia individual, em que se clama pela não interferência do Estado, pela não discriminação, pela não coerção e pela não violência”.[1]
O conceito de direitos sexuais refere-se a um conjunto de normas, leis, portanto, direitos, que dizem respeito à liberdade sexual, autonomia, integridade e segurança, privacidade, prazer, escolhas livres e responsáveis, informação e exercício às formas de expressão sexual, de maneira segura e livre de pressões.[3]
Embora muitos desses direitos já se encontrem legitimados, seja pela sociedade, seja por leis específicas ou até mesmo por jurisprudências judiciais, ainda é alvo de críticas de setores sociais, especialmente daqueles ligados a correntes religiosas. Por não serem plenamente reconhecidos, os direitos sexuais, muitas vezes, aparecem acoplados aos direitos reprodutivos, como se fora seu complemento. Isto pode ser compreendido como uma estratégia para o desenvolvimento de políticas, mas ainda representa a dificuldade que se tem para a sua tradução em políticas públicas específicas.[1]
Os dois conjuntos de direitos nos remetem diretamente à questão da saúde e à garantia, pelo Estado, do direito à saúde reprodutiva e à saúde sexual, tendo como referência a Constituição Federal Brasileira de 1988.
A construção dos direitos sexuais e reprodutivos é resultado da discussão sobre a autonomia do corpo, o controle da fecundidade, pelo acesso à contracepção e reivindicações sobre saúde reprodutiva, trazidas pelo movimento feminista da década de 70 e também pelas conferências internacionais, especialmente a Conferência Internacional de População e Desenvolvimento (CIPD), em 1994, realizada no Cairo, que deslocou a discussão sobre desenvolvimento e sua relação com população da órbita do controle populacional, emergindo a importância do conceito de igualdade de gênero.[2]
História
editarA partir da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948, o mundo passou a debater e refletir criticamente sobre um conjunto de situações colocadas historicamente que tornou possível a ampliação da concepção de direitos humanos reconhecidas pelo pós-guerra.
Os direitos sexuais e os direitos reprodutivos emergem historicamente a partir dessa discussão e o auge de seu reconhecimento se dá durante a realização, em 1994, da Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento, convocada pela Organização das Nações Unidas, no Cairo.
A Conferência do Cairo, como é conhecida, deu origem a uma nova maneira de compreender desenvolvimento e população, ou seja, de forma entrelaçada e levando em conta a vida das pessoas e as incluindo no processo de desenvolvimento dos países.
Como resultado dessa conferência, foi aprovado por consenso e assinado por 179 países um acordo que resultou no documento Programa de Ação de Cairo que contém um conjunto de medidas e ações para melhorar a qualidade de vida das pessoas. A conferência foi também decisiva para o reconhecido mundial do papel-chave da mulher para o alcance dos objetivos de desenvolvimento colocados no Programa de Ação.
Muito embora o Programa de Ação não tenha explicitado ações voltadas especificamente para os direitos sexuais e direitos reprodutivos, tendo em vista a diversidade de países e a soberania dos Estados para a aplicação do Programa (especialmente no que se refere ao reconhecimento do direito ao aborto), muitas ações relativas à saúde reprodutiva têm estreita ligação com a saúde sexual como, por exemplo, a importância de campanhas para a prevenção de doenças sexualmente transmissíveis e para a redução substancial de gravidezes entre adolescentes, o que implica numa abordagem crítica sobre saúde sexual e reprodutiva. Outro aspecto dentro da saúde sexual e reprodutiva considerado fundamental pela CIPD foi a diminuição do aborto inseguro como uma questão de saúde e, consequentemente, deixar de ser entendido como um método de planejamento familiar.
O Programa de Ação de Cairo assinado pelas nações delinearam iniciativas no âmbito da população, igualdade, direitos, educação, saúde, meio ambiente e redução da pobreza com a abordagem centrada no desenvolvimento humano. Esta abordagem definiu uma nova orientação para a comunidade internacional e para os governos, substituindo o Plano de Ação da População Mundial de 1974. Assinalou uma nova compreensão entre as entidades mundiais do entrelaçamento entre os conceitos de população e o desenvolvimento e a atribuição de poder à mulher como a chave para ambos. E, pela primeira vez, a saúde reprodutiva e sexual e os direitos da mulher tornaram-se o elemento central de um acordo internacional sobre população e desenvolvimento.
Trajetória no Brasil
editarAntes da Constituição de 1988
editarNo início do século XX dois importantes conjuntos de leis estabeleceram questões sobre os direitos sexuais e reprodutivos no Brasil: a Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) e o Código Penal, ambos de 1940. A forte cultura religiosa e influência da Igreja Católica no Brasil junto ao pensamento de que a mulher têm deveres em relação ao homem influenciaram o estabelecimento dessas leis. As principais determinações da CLT e do Código Penal de 1940 quanto a esses direitos são[4]:
CLT:
- Leis de proteção à maternidade (Art. 391);
- Direito à proteção do trabalho da mulher (Art. 372).
Código Penal:
- Torna ilegal o aborto voluntário, exceto em alguns casos;
- Proíbe o anúncio e uso de substâncias que interrompam ou evitem a gravidez (proibição retirada em 1979)
Nas décadas de 1970 e 1980, os movimentos feministas se engajaram pela expansão dos direitos sexuais e reprodutivos no Brasil. Essa movimentação aliada ao discurso de que o crescimento populacional dificulta o desenvolvimento nacional e gera esgotamento dos recursos ambientais incentivou e provocou mudanças na legislação brasileira. Além disso, a crescente industrialização, urbanização e entrada da mulher no mercado de trabalho aumentaram a demanda por meios regulamentadores de fecundidade.
Na década de 1980, diversos movimentos sociais surgiram e se reforçaram em prol da volta da democracia , o movimento feminista em expansão se posicionava contra à ausência de políticas públicas em relação a igualdade, violência contra a mulher e outras medidas que possibilitasse o exercício dos direitos sexuais e reprodutivos. Em conjunto com a reforma sanitária brasileira, as reivindicações feministas contribuíram para a mudança dos modelos de intervenção na saúde reprodutiva. Permitindo a criação do Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher (PAISM), em 1983 com abrangência federal, e o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM), em 1985.
Pós Constituição de 1988
editarA Constituição Federal de 1988, conhecida como “Constituição cidadã”, foi um marco na conquista de diversos direitos sociais extremamente importantes para o exercício adequado dos direitos sexuais e reprodutivos como a garantia à saúde, à maternidade e à infância.
Estruturalmente, é garantido a igualdade entre homens e mulheres perante a lei e sendo dever do Estado aplicar e desenvolver mecanismos que permitam essa igualdade. A liberdade como um direito permite os indivíduos pensarem e agirem de forma a não serem restritos em relação a sua sexualidade. Além disso, são múltiplos os direitos garantidos na Constituição que compreendem os direitos sexuais e reprodutivos:
Constituição Federal de 1988:
- A proteção à maternidade e à infância são direitos sociais (Art. 6).
- A assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social, e tem por objetivos: I - a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice (Art. 203);
- A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. É responsabilidade do Estado no que se refere ao planejamento familiar (Art. 226);
- A autonomia reprodutiva que estabelece o direito de toda pessoa decidir livre e responsavelmente sobre o número, espaçamento e oportunidade de ter filhos (Art. 226 §7º);
Existem Leis Federais que possibilitam o exercício dos direitos sexuais e reprodutivos, abrangendo principalmente temas como planejamento familiar, violência sexual, aborto voluntário legal, mortalidade materna, infecções sexualmente transmissíveis. As principais leis que abordam os temas são as seguintes:
Leis Federais:
- Nova redação aos artigos 14, 83 e 89 da lei 7.210, de 11 de julho de 1984 - Lei de execução penal, para assegurar às mães presas e aos recém-nascidos condições mínimas de assistência (Lei 11.942);
- Dispõe sobre o direito da gestante ao conhecimento e a vinculação à maternidade onde receberá assistência no âmbito do SUS (Lei 11.634);
- Altera artigo da Lei Federal n.º 9.434, de 04/02/1997, que dispõe sobre a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante e tratamento. (Lei 11.633);
- Altera a Lei Federal n.º 8.080, de 19/09/1990, para garantir às parturientes o direito à presença de acompanhante durante o trabalho de parto, parto e pós-parto imediato no âmbito do SUS. (Lei 11.108);
SUS
editarCom a criação do Sistema Único de Saúde, diversas políticas foram desenvolvidas com o objetivo de reduzir a transmissão de ISTs, a fecundidade e ampliar a ideia de planejamento familiar entre os brasileiros. A proposta fundamental das políticas envolve a distribuição de preservativos (masculinos e femininos), anticoncepcionais e DIU, garantindo também sua inserção. Além disso, a distribuição de informação por meio de manuais técnicos e cartilhas educativas, a capacitação dos profissionais de saúde da atenção básica para assistência em planejamento familiar, ampliação do acesso à esterilização cirúrgica voluntária no SUS, aumentar a atenção à saúde sexual e à saúde reprodutiva de adolescentes e jovens. No Brasil, o planejamento familiar como direito dos cidadãos é dever do Estado e a assistência em planejamento familiar deve incluir acesso à informação e a todos os métodos e técnicas para concepção e anticoncepção, cientificamente aceitos, e que não coloquem em risco a vida e a saúde das pessoas, de acordo com a Lei do Planejamento Familiar, Lei n.º 9.263/199.[5]
Política Nacional dos Direitos Sexuais e dos Direitos Reprodutivos
editarDe acordo com a Política Nacional dos Direitos Sexuais e dos Direitos Reprodutivos (2005), esse é um tema central para o governo e que está voltado para garantir os direitos de homens e mulheres, adultos e adolescentes, focando, principalmente, no planejamento familiar. O Pacto pela Saúde firmado no Brasil entre gestores do SUS, vigente desde 2006, incluí algumas prioridades que correlacionam a saúde sexual com a saúde reprodutiva como o fortalecimento da atenção básica e a promoção da saúde, controle do câncer de colo de útero e da mama, redução da mortalidade infantil e materna, entre outros. [6]
O planejamento familiar no SUS conta com a distribuição de métodos anticoncepcionais reversíveis. Entre os anos 2000 e 2001 foram distribuídos às secretarias estaduais de saúde e às secretarias municipais de saúde 6.210.600 cartelas de anticoncepcional hormonal oral combinado de baixa dosagem, 582.300 ampolas de anticoncepcional hormonal injetável trimestral, 158.300 unidades 11 de DIU TCu 380 A e 30.000 unidades de diafragma. [7]
A partir de 2001, foi decidido pelo poder tripartite que esses métodos iriam ser distribuídos em municípios que tiverem: "pelo menos uma equipe do Programa de Saúde da Família (PSF) habilitada; ou Estar com o termo de adesão ao Programa de Humanização no Pré-Natal e Nascimento (PHPN) aprovado; ou Contar com pelo menos uma equipe do Programa de Interiorização do Trabalho em Saúde (PITS)"[8]
Além de métodos anticoncepcionais reversíveis, há também uma política de elaboração e distribuição de manuais técnicos e cartilhas educativas, capacitação dos profissionais de saúde da atenção básica para a assistência em planejamento familiar, ampliação do programa Saúde e Prevenção nas Escolas, entre outras, há muitas políticas direcionadas para a saúde reprodutiva, contudo, ainda nota-se que há uma carência de direitos reprodutivos e autonomia total sobre o corpo da mulher, isso ligado principalmente aos debates sobre o direito ao aborto legal.
Mesmo dentro das políticas formuladas pelo governo brasileiro, a questão da reprodução aparece como algo sendo para “homens” e “mulheres”, com a possibilidade do direito e da saúde reprodutiva pautada em casais binários e cisgêneros, não tendo fundamento teórico e prático uma vez que os papéis de gênero são construções sociais[9] e que existem diversos papéis de gênero e sexualidade no Brasil.
No Brasil, o aborto é legal em três situações: quando a vida da pessoa gestante está em risco, quando a gestação é fruto de um estupro (garantidas pelo Código Penal de 1940, Art. 123) e no caso de o feto for portador de anencefalia (garantida pela ADPF 54).
Ver também
editarReferências
- ↑ a b c PIOVESAN, Flavia. «Direitos reprodutivos como direitos humanos». Consultado em 30 de agosto de 2013
- ↑ a b c «Relatório da Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento» (PDF). 1994. Consultado em 30 de agosto de 2013
- ↑ a b «Declaração e Plataforma de Ação da IV Conferência Mundial sobre a Mulher» (PDF). 1995. Consultado em 30 de agosto de 2013
- ↑ VENTURA, Miriam (2009). Direitos reprodutivos no Brasil. [S.l.: s.n.]
- ↑ Ministério da Saúde (2005). «Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos: uma prioridade do governo»
- ↑ BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Saúde sexual e saúde reprodutiva, Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de Atenção Básica. Saúde Sexual e Reprodutiva do Ministério da Saúde, Brasília, 1. ed., 2013. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/saude_sexual_saude_reprodutiva.pdf
- ↑ BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos: uma Prioridade do governo.Brasília, cad. nº 1, 2005. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/cartilha_direitos_sexuais_reprodutivos.pdf
- ↑ BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos: uma Prioridade do governo.Brasília, cad. nº 1, 2005. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/cartilha_direitos_sexuais_reprodutivos.pdf
- ↑ BEAUVOIR (1980). O Segundo Sexo - fatos e mitos (PDF). [S.l.]: Simone
Bibliografia
editar- CAMPOS, Carmen Hein de;OLIVEIRA, Guacira Cesar de (2009). «Saúde Reprodutiva das Mulheres: Direitos, Desafios e Políticas Públicas». Saúde Reprodutiva das Mulheres: Direitos, Desafios e Políticas Públicas. Documento que resgata estudos e implementação de políticas públicas voltadas para a saúde sexual e reprodutiva das mulheres, disponível no site da ONG CFEMEA.
- VENTURA, Miriam (2009). «Direitos reprodutivos no Brasil» (PDF). Livro de Miriam Ventura, patrocinado pelo Fundo de População das Nações Unidas - UNFPA, sobre a questão dos direitos reprodutivos no Brasil.
- «Rumos para Cairo+20» (PDF). Documento resultante da Oficina de Trabalho “Compromissos do Governo Brasileiro com a Plataforma da Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento: Rumos para Cairo + 20”, realizada em dezembro de 2009 pela Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República (SPM). 2009
- CAETANO, André Junqueira; ALVES, José Eustáquio Diniz; CORRÊA, Sônia (Eds) (2004). «Dez anos do Cairo: tendências da fecundidade e direitos reprodutivos no Brasil» (PDF). Publicação conjunta da ABEP e do UNFPA-Brasil com reflexões sobre os 10 anos da Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento.
- ZORZAM, Bianca Alves de Oliveira. "Informações e escolha no parto: perspectivas das mulheres usuárias do SUS e da Saúde Suplementar" São Paulo, 2013.