Casa de Saúde Anchieta
A Casa de Saúde Anchieta popularmente conhecida como Casa dos Horrores[1] foi um manicômio particular localizado na Vila Belmiro em Santos, São Paulo. Fundado em 1951 pelo psiquiatra Edmundo Maia[2][3], o hospital foi palco das mais diversas violações dos direitos humanos, incluindo torturas físicas e psicológicas, trabalho escravo e assassinatos.[4] A intervenção no hospital realizada pela prefeitura e impulsionada pelo movimento antimanicomial em 03 de maio de 1989 foi considerada como o marco inicial da reforma psiquiátrica no Brasil.[5][6] Com o abandono do imóvel, mais de duzentas famílias em situação de vulnerabilidade social ocuparam o local que hoje recebe o nome de "Ocupação Anchieta".[7]
Casa de Saúde Anchieta
| |
---|---|
Intervenção na Casa de Saúde Anchieta determinada pela então prefeita de Santos, Telma de Souza, em 1989 | |
Localização | Vila Belmiro, Santos, São Paulo Brasil |
Fundação | 1951 (73 anos) |
Tipo | Manicômio |
Histórico
editarA Casa de Saúde Anchieta surgiu em 1951 com a iniciativa do psiquiatra e professor Edmundo Maia, creditado como diretor do Serviço Nacional de Doenças Mentais do Ministério da Saúde e assessor de Saúde Mental de Jânio Quadros.[8][3][9] Anteriormente funcionando na Avenida Ana Costa nº 168, em 1953 passou a ser localizada em um edifício próprio de 5 mil metros quadrados[10] construído na rua São Paulo nº 95 no bairro Vila Belmiro em Santos.[11] Foi apresentada como o "maior e mais moderno hospital particular da América do Sul", que oferecia assistência e tratamento de doenças do sistema nervoso e objetivava ser uma "casa de repouso, dotada de todo o conforto".[12][13] No entanto, seu atendimento foi se deteriorando devido à lógica mercantilista vigente nos cuidados em saúde do país.[14][13] Os proprietários recebiam verbas do Instituto Nacional do Seguro Social e mantinham mais de 500 pacientes internados em suas dependências, muito embora o local comportasse no máximo 250 internos.[10]
Casa dos Horrores
editarEm fevereiro de 1989, a imprensa local noticiou uma série de denúncias acerca dos maus tratos e mortes que ocorriam no local, recebendo o apelido de "Casa dos Horrores" devido aos gritos de dor e sofrimento dos pacientes que eram ouvidos pela vizinhança. Profissionais envolvidos posteriormente na intervenção do hospital relataram que os pacientes se encontravam sem roupas em um espaço superlotado, eram confinados e comiam em latões onde defecavam. Além disso, os pacientes recebiam doses de remédios hoje consideradas excessivas; as mulheres não tinham acesso a absorventes e eletrochoques eram utilizados como forma de punição.[1][13] O tempo médio de internação era de seis meses, no entanto havia pessoas internadas há mais de uma década. A CSA utilizava como tratamento celas fortes (pequenas salas individuais fechadas com portas de material reforçado e uma única abertura[15]), contenção física, insulinoterapia, lobectomia e eletrochoques.[13] Em março do mesmo ano, haviam 543 pacientes em condições precárias de vida e foram registradas 50 mortes em 3 anos.[16][13] Em abril, um relatório elaborado pelo governo do Estado apresentando os problemas da CSA chegou à Secretaria de Higiene e Saúde do Município de Santos (SEHIG), que por sua vez deu um prazo de uma semana para os responsáveis pelo hospital corrigirem as irregularidades. Representantes da SEHIG, entre eles o secretário municipal de Saúde David Capistrano Filho, da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo e do INAMPS realizaram uma vistoria no local que gerou outro relatório detalhando inúmeras deficiências na instituição, entre elas a falta de profissionais, ausência de recursos para higiene e alimentação, punições dos mais diversos tipos, trabalho escravo e o não-cumprimento das normas para dispensário de psicotrópicos.[13] Após a exposição dos relatos e nenhuma das irregularidades ter sido sanada, no dia 3 de maio a prefeita Telma de Souza em sua primeira gestão decretou a intervenção municipal no Anchieta.[17][10]
Reforma psiquiátrica
editarEste artigo é parte da série Reforma Psiquiátrica |
Serviços substitutivos |
Outros artigos de interesse |
Indústria da Loucura
editarNo Brasil, a assistência em saúde mental foi inicialmente implementada pelo setor público. Após o golpe de Estado no Brasil em 1964, o sistema de saúde passou por significativas transformações e a área da psiquiatria passou a ser gerida quase integralmente por empresas privadas. Na época da ditadura militar brasileira, os leitos psiquiátricos privados saltaram de 14 mil para mais de 70 mil e os investimentos públicos na saúde foram cortados.[18][19] A medicalização era o modelo básico de intervenção psiquiátrica, de tal forma que o elevado índice de internações e o poder centralizador do hospital psiquiátrico passaram a ser consideradas as causas fundamentais das condições desumanas a que eram submetidos os pacientes.[20] Além disso as internações eram um meio de controle social e de repressão da ditadura, que encontrou nos manicômios uma espécie de depósito para aqueles que eram considerados "indesejados" ou não-produtivos para o sistema capitalista.[21] Ficou famosa a expressão "um paciente psiquiátrico vale um cheque em branco"[22] e o período ficou conhecido como "Indústria da Loucura".[23]
Saúde em Santos
editarComo reflexo do conjuntura política e da ascensão das lutas sociais pela redemocratização no país, o movimento de reforma sanitária no Brasil surgiu em meados da década de 70 reunindo intelectuais, profissionais da saúde e movimentos populares que visavam democratizar o acesso à saúde no país, resultando na criação do Sistema Único de Saúde.[24] A cidade de Santos, contudo, não sentiu os efeitos da reforma até 1988, período em que os serviços de saúde tinham quase a mesma abrangência que na década de 40[25] e a cidade era considerada a "capital da AIDS"[26][27] por possuir o maior número de casos da doença proporcionais à população.
A Intervenção na Casa de Saúde Anchieta
editarFoi com a evolução da luta antimanicomial que o município de Santos apresentou uma experiência inédita no país, instaurando a partir do Programa de Saúde Mental de Santos em 1989 uma rede de serviços para substituir gradativamente o manicômio. A Casa de Saúde Anchieta foi fechada definitivamente em 1996 e cinco Núcleos de Atenção Psicossocial (NAPS) foram criados.[28] Com isso, a cidade ficou conhecida como pioneira na luta antimanicomial.[10]
Ver também
editarReferências
- ↑ a b «Intervenção na 'Casa dos Horrores' completa 30 anos em Santos, SP». G1. Consultado em 10 de janeiro de 2022
- ↑ Bordignon, Gabriel Barros (20 de agosto de 2015). «Territórios dissidentes: espaços da loucura na cultura urbana contemporânea». doi:10.14393/ufu.di.2015.398. Consultado em 10 de janeiro de 2022
- ↑ a b «Novo Milênio: Histórias e Lendas de Santos: Antigos médicos e hospitais santistas/Hospitais - Hospital Anchieta (4): Livro 'Anchieta, 15 anos', de Paulo Matos». www.novomilenio.inf.br. Consultado em 10 de janeiro de 2022
- ↑ Kinoshita, Roberto Tykanori (2009). «Saúde Mental e a Antipsiquiatria em Santos: vinte anos depois.». Cadernos Brasileiros de Saúde Mental/Brazilian Journal of Mental Health. pp. 223–231. Consultado em 10 de janeiro de 2022
- ↑ «Ex-internos da casa dos horrores relatam a vida depois do hospício - Emais». Estadão. Consultado em 10 de janeiro de 2022
- ↑ Hirdes, Alice (fevereiro de 2009). «A reforma psiquiátrica no Brasil: uma (re) visão». Ciência & Saúde Coletiva. pp. 297–305. doi:10.1590/S1413-81232009000100036. Consultado em 10 de janeiro de 2022
- ↑ Martins, Elisa Fontes e Ailton (11 de dezembro de 2021). «Desamparadas pela prefeitura, famílias correm risco de despejo em Santos (SP)». Ponte Jornalismo. Consultado em 10 de janeiro de 2022
- ↑ Delmanto, Júlio (20 de setembro de 2018). «História social do LSD no Brasil: os primeiros usos medicinais e o começo da repressão». Consultado em 10 de janeiro de 2022
- ↑ «Decreto de 29 de Junho de 1971». www.al.sp.gov.br. 29 de junho de 1971. Consultado em 10 de janeiro de 2022
- ↑ a b c d Rodrigues, Alex (28 de junho de 2010). «Interdição em hospital particular leva Santos à condição de pioneira na luta antimanicomial». memoria.ebc.com.br. Consultado em 10 de janeiro de 2022
- ↑ «Novo Milênio: Histórias e Lendas de Santos: Antigos médicos e hospitais santistas/Hospitais - Hospital Anchieta (3)». www.novomilenio.inf.br. Consultado em 10 de janeiro de 2022
- ↑ A Tribuna (1 de maio de 1953). «Dentro de poucos dias será inaugurado em Santos o maior e mais moderno hospital particular da América do Sul». A Tribuna. Consultado em 10 de janeiro de 2022
- ↑ a b c d e f Koda, Mirna Yamazato (19 de agosto de 2002). «Da negação do manicômio à construção de um modelo substitutivo em saúde mental: o discurso de usuários e trabalhadores de um núcleo de atenção psicossocial». Consultado em 10 de janeiro de 2022
- ↑ Da Silva, Mariane Helena (7 de dezembro de 2015). «A atuação do assistente social no centro de atenção psicossocial». repositorio.unifesp.br. Consultado em 10 de janeiro de 2022
- ↑ Guimarães, Andréa Noeremberg; Borba, Letícia de Oliveira; Larocca, Liliana Muller; Maftum, Mariluci Alves (junho de 2013). «Tratamento em saúde mental no modelo manicomial (1960 a 2000): histórias narradas por profissionais de enfermagem». Texto & Contexto - Enfermagem. pp. 361–369. doi:10.1590/S0104-07072013000200012. Consultado em 10 de janeiro de 2022
- ↑ Carvalho, Priscila Larangeira (31 de julho de 2013). «O Psicólogo nas políticas públicas de saúde mental, no Município de Santos-SP». Consultado em 10 de janeiro de 2022
- ↑ Nadotti, Vanessa Xavier (17 de dezembro de 2020). «O PT e a saúde pública no Brasil». Perseu: História, Memória e Política. pp. 165–243. Consultado em 10 de janeiro de 2022
- ↑ Martins, Matheus Eduardo Rodrigues; Assis, Fátima Buchele; Bolsoni, Carolina Carvalho (16 de setembro de 2019). «Ressuscitando a indústria da loucura?!». Interface - Comunicação, Saúde, Educação. doi:10.1590/Interface.190275. Consultado em 11 de janeiro de 2022
- ↑ «"Indústria da Loucura"». Marco Zero Conteúdo. 3 de agosto de 2016. Consultado em 11 de janeiro de 2022
- ↑ Ferreira, Gina (2006). «A Reforma Psiquiátrica no Brasil: Uma análise sócio política». Psicanálise & Barroco em Revista. pp. 131–145. doi:10.9789/1679-9887.2006.v4i1.131-145. Consultado em 11 de janeiro de 2022
- ↑ Neves, Noyelle Neumann das (2010). «Análise das políticas públicas em saúde mental no Brasil : o papel do estado na proteção da coletividade e do indivíduo contra si próprio.». Consultado em 11 de janeiro de 2022
- ↑ «"O maior risco é a perda da garantia de direitos das pessoas com transtornos psiquiátricos", diz especialista em saúde mental». Revista Fórum. 15 de dezembro de 2017. Consultado em 11 de janeiro de 2022
- ↑ Duque, Camila da Cunha (2019). «Ascensão E Declínio Da Indústria Da Loucura E A Cidade De Juiz De Fora - Mg». 1library.org. Consultado em 11 de janeiro de 2022
- ↑ Paim, Jairnilson Silva (2008). «Reforma sanitária Brasileira: contribuição para a compreensão e crítica». Editora FIOCRUZ. Consultado em 10 de janeiro de 2022
- ↑ Luzio, Cristina Amélia; L'Abbate, Solange (dezembro de 2006). «A reforma psiquiátrica brasileira: aspectos históricos e técnico-assistenciais das experiências de São Paulo, Santos e Campinas». Interface - Comunicação, Saúde, Educação. pp. 281–298. doi:10.1590/S1414-32832006000200002. Consultado em 11 de janeiro de 2022
- ↑ Júnior, Irineu Barreto Francisco (29 de dezembro de 2017). «DIREITOS SOCIAIS E POLÍTICAS PÚBLICAS: PREVENÇÃO E TRATAMENTO DE AIDS E SAÚDE MENTAL NA CIDADE DE SANTOS – SP - 10.12818/P.0304-2340.2017v70p411». REVISTA DA FACULDADE DE DIREITO DA UFMG. pp. 411–434. Consultado em 10 de janeiro de 2022
- ↑ Santos, LG Rodrigues e Mariane RossiDo G1 (18 de julho de 2014). «Considerada 'capital da Aids', Santos reduz casos, mas ainda vive epidemia». Santos e Região. Consultado em 10 de janeiro de 2022
- ↑ Micheletti, Fátima Aparecida Barbosa de Oliveira (30 de novembro de 2000). «Buscando um re-significado da visita domiciliar no serviço social». Consultado em 11 de janeiro de 2022