O Juízo Final (Memling)

O Juízo Final é um tríptico atribuído ao pintor alemão Hans Memling e foi pintado entre 1467 e 1471. Encontra-se no Museu Nacional de Gdańsk, na Polónia. O tríptico foi comissionado pelo banqueiro florentino Angelo Tani, um representante do Banco Medici em Bruges, mas foi roubado no Canal da Mancha por Paul Beneke, [1] um corsário de Danzig. Um longo processo contra a Liga Hanseática exigiu seu retorno à Itália, mas não se obteve sucesso em conseguir o retorno da pintura às terras italiotas. Foi colocado na Igreja de Santa Maria, [1] em Gdańsk, mas, no século XX foi mudado para a sua actual localização.[2]

O Juízo Final

Autor Hans Memling
Data Entre 1467 e 1471
Técnica óleo sobre carvalho
Dimensões 306 × 222 
Localização Museu Nacional de Gdańsk, Gdańsk

Descrição

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Painel central

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O painel central mostra Cristo Juiz que, rodeado pelo arco-íris e com os pés sobre um globo que representa a Terra, inicia o Julgamento. Acima de Cristo, quatro anjos carregam os símbolos da Paixão: a coluna de flagelação, a cruz, a coroa de espinhos, a lança de Longino, a esponja com vinagre, pregos e martelo. [3] Nas laterais da cabeça de Jesus é possível observar uma espada e um lírio, utilizados para representar a justiça e a misericórdia divina, conforme dito em Cânticos 2: "Eu sou a rosa de Sarom, o lírio dos vales".[4] Aos lados, nas nuvens, alinhados em fileiras encurtadas, estão os apóstolos, a Virgem Maria e São João Batista. Cristo ergue sua mão direita, simbolizando a ascensão dos salvos ao Paraíso, e sua mão esquerda está com a palma virada para trás, representando o destino eterno dos condenados. [3] A escolha de um simples pano para envolver Jesus era preferível no norte europeu, onde o tríptico foi feito. [3]

Na parte inferior do centro do tríptico está São Miguel, trajado de armadura dourada, realiza a pesagem das almas. A associação de São Miguel ao momento da psicostasia provavelmente estava relacionada à sua imagem de anjo guerreiro, fundamentada pela passagem em que ele e sua legião de anjos lideraram o combate a Lúcifer. [5] Ao som das trombetas angélicas, tocadas pelos anjos da área central do painel, os mortos despertam de seus túmulos e são pesados por São Miguel. Abaixo da pesagem das almas, os corpos ressuscitados observam o desenrolar do julgamento.

Painel direito

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No painel direito (à esquerda de Cristo) está representada a entrada para o Inferno. Um anjo assopra a trombeta, aludindo ao Livro do Apocalipse, vigia a caverna em chamas em que os condenados são conduzidos a sua punição eterna. Os condenados são torturados por demônios e aparentam desespero e dor em seus semblantes, conforme dito em Mateus 25: 31-41: "Então dirá também aos que estiverem à sua esquerda: Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno, preparado para o diabo e seus anjos;". [6] Memling destaca o sofrimento e a agonia dos condenados em sua jornada ao Inferno através de suas expressões faciais e a torção de seus corpos, algo muito comum na pintura medieval holandesa. Também é ressaltada a anatomia dos corpos humanos.[7]

Painel esquerdo

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O painel esquerdo (à direita de Jesus) representa as pessoas salvas por Jesus Cristo para desfrutar da vida eterna no Paraíso, assim como dito em Mateus 25: 31-33, "E porá as ovelhas à sua direita, mas os bodes à esquerda".[6] São acolhidos por São Pedro, que segura a chave das terras celestiais, e por um anjo, estão nus e sobem uma escadaria de aparência marmorizada envolta em nuvens negras. Conforme sobem em direção aos portões divinos, são vestidos com mantos por mais anjos. A porta do Paraíso é apresentada como um enorme portal de estilo gótico, que conta com vários relevos e torres, que evoca a Sagrada Jerusalém, descrita no Livro do Apocalipse e no livro De Civitate Dei, de autoria de Santo Agostinho.[8] Na torre direita inferior existem três anjos, cada um tocando um instrumento musical - uma harpa, um alaúde e um violino. Na torre esquerda inferior, três anjos leem um livro em conjunto. Na torre esquerda superior, dois anjos tocam trombetas. No balcão existem mais quatro anjos.

Técnica

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A pintura foi realizada seguindo as normas artísticas dos Países Baixos. Seu painel é constituído de madeira de carvalho de árvores advindas da parte central da Polônia, provavelmente da floresta de Białowieża. O método escolhido para colorir a madeira foi a tinta a óleo.[9]

Iconografia

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A representação imagética do Juízo Final se tornou mais aparente a partir do século IX, porém, sua popularização ocorreu no século XIII. Acredita-se que muitos dos seus elementos iconográficos canônicos tenham sido incorporados através de imagens criadas em pregações nas igrejas e também a partir das tradições orais acerca do tema. A Segunda Vinda de Cristo, prevista nas escrituras bíblicas e marcada como o último dia da história cristã, anuncia o fim dos tempos, a ressurreição dos mortos e a pesagem das almas de todas as pessoas para que sejam dirigidas ao Paraíso ou ao Inferno. Para que uma cena seja considerada uma representação do Juízo Final, é necessário que a mesma cumpra certos critérios iconográficos, como a presença do Cristo Juiz com seus estigmas, os anjos tocando as trombetas e carregando os símbolos da Paixão, a ressurreição dos corpos, o ato do julgamento em si, a separação entre salvos e condenados e a presença da Virgem Maria e São João Batista. [10] Memling faz uso de todos os critérios necessários para que o tríptico seja considerado de fato uma representação visual do Juízo Final, e não somente uma visão apocalíptica.

A escolha de representação em um painel de madeira refletia a mudança dos costumes devocionais dos cristãos ao longo da Idade Média, que foram adotando práticas devocionais cada vez mais individualizadas e personalizadas, influenciados pelas ordens mendicantes - com ênfase na Ordem Franciscana e na Ordem Dominicana - que surgiam com demasiado fervor.[11]

Controvérsias

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Embora a maioria dos especialistas concorde com a atribuição da obra a Hans Memling, a questão da sua autoria sempre provocou dúvidas na comunidade artística. A única data de confirmada existência do tríptico é a de 1473, quando o seu roubo por piratas ocorreu, e, ao longo dos séculos, sua autoria oscilou entre os irmãos flamengos Hubert van Eyck e Jan van Eyck e o holandês Rogier van der Weyden.[12] Uma parte principal da sua polêmica no que se refere à autoria e à comissão do tríptico se dá devido à estadia de Angelo Tani em Bruges. A partir de 1440, Tani esteve associado ao Banco Medici, inicialmente representando sua filial em Londres, e, a partir de 1448, a filial de Bruges, com a assistência de Tommaso Portinari. Durante um período em que Tani esteve ausente dos Países Baixos, Portinari aproveitou-se da oportunidade para se apossar do cargo do primeiro. Tani foi visto em Bruges novamente apenas em 1481, e o tríptico, em 1473, ainda permanecia na cidade. Grande parte dos pesquisadores acredita que era a intenção de Tani comissionar o tríptico a Rogier van der Weyden, pois o associado dos Médici provavelmente conhecia a obra o Retábulo de Beaune - de autoria do holandês - e desejava obter uma cópia da pintura para si mesmo, porém, o pintor faleceu em 1465, tornando essa comissão impossível.[13]

A relação entre o Juízo Final de Hans Memling e o Retábulo de Beaune de Rogier van der Weyden vai muito além da questão autoral. O tríptico de Gdańsk foi inicialmente atribuído a Memling em 1843 pelo historiador da arte alemão Heinrich Gustav Hotho. Em 1864, outro historiador da arte alemão, Ernst Foerster, argumentou que a obra de Gdańsk foi idealizada e iniciada por Rogier van der Weyden e terminada por Memling.[12] Ambas as pinturas representam a figura de Jesus acima do arcanjo Miguel, que carrega a balança utilizada na pesagem das almas do julgamento, assim como incluem imagens dos doze Apóstolos sentados, quatro anjos segurando objetos associados à Paixão de Cristo e ilustrações angelicais que tocam as trombetas apocalípticas. A maior semelhança entre as duas obras é, decerto, o posicionamento do arcanjo Miguel diretamente abaixo de Jesus.[13]

Ver também

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Referências

  1. a b Szmelter, Iwona; Ważny, Tomasz (2019). Nevin, Austin; Sawicki, Malgorzata, eds. «Multi-Disciplinary Complex Research to Reconsider Basic Questions on Attribution and Dating of the Last Judgment Triptych from National Museum in Gdańsk by Rogier van der Weyden and Hans Memling». Cham: Springer International Publishing (em inglês): 197–226. ISBN 978-3-030-11054-3. doi:10.1007/978-3-030-11054-3_11. Consultado em 11 de setembro de 2024 
  2. Visual Arts
  3. a b c Quírico, Tamara (2013). «A representação do Cristo juiz em pinturas toscanas do Trecento ao Cinquecento». Revista Concinnitas (23): 23–51. ISSN 1981-9897. Consultado em 6 de dezembro de 2024 
  4. «Cânticos 2 - Bíblia Online - ACF». Bíblia Online. Consultado em 6 de dezembro de 2024 
  5. Quírico, Tamara (1 de janeiro de 2007). «A psicostasia nas representações visuais do Juízo final». Atas da VII Semana de Estudos Medievais. Rio de Janeiro: PEM/ UFRJ. Consultado em 6 de dezembro de 2024 
  6. a b «Mateus 25:31-46 - Bíblia Online - ACF». Bíblia Online. Consultado em 23 de outubro de 2024 
  7. Koldeweij, Jos. «'Mediaeval Painting in the Netherlands'». in: Nelly de Hommel, Jos Koldeweij, Flemish Apocalypse, Barcelona 2005, p. 11-57. Consultado em 9 de dezembro de 2024 
  8. Quírico, Tamara (1 de janeiro de 2014). «The representation of Heaven and Hell in Last Judgement scenes». PICCAT, M.; RAMELLO, L.. (Org.). Memento Mori. Il genere macabro in Europa dal Medioevo a oggi. Alessandria: Edizioni dell'Orso. Consultado em 23 de outubro de 2024 
  9. Szmelter, Iwona; Ważny, Tomasz (2019). Nevin, Austin; Sawicki, Malgorzata, eds. «Multi-Disciplinary Complex Research to Reconsider Basic Questions on Attribution and Dating of the Last Judgment Triptych from National Museum in Gdańsk by Rogier van der Weyden and Hans Memling». Cham: Springer International Publishing (em inglês): 197–226. ISBN 978-3-030-11054-3. doi:10.1007/978-3-030-11054-3_11. Consultado em 11 de setembro de 2024 
  10. Quírico, Tamara (2013). «A representação do Cristo juiz em pinturas toscanas do Trecento ao Cinquecento». Revista Concinnitas (23): 23–51. ISSN 1981-9897. Consultado em 6 de dezembro de 2024 
  11. «XXVIII Simpósio Nacional de História - Anais Simpósios ANPUH - Page 81». anpuh.org.br. Consultado em 9 de dezembro de 2024 
  12. a b Szmelter, Iwona; Ważny, Tomasz (2019). Nevin, Austin; Sawicki, Malgorzata, eds. «Multi-Disciplinary Complex Research to Reconsider Basic Questions on Attribution and Dating of the Last Judgment Triptych from National Museum in Gdańsk by Rogier van der Weyden and Hans Memling». Cham: Springer International Publishing (em inglês): 197–226. ISBN 978-3-030-11054-3. doi:10.1007/978-3-030-11054-3_11. Consultado em 11 de setembro de 2024 
  13. a b Lane, Barbara (9 de maio de 2014). «The Patron and the Pirate: The Mystery of Memling's Gdańsk Last Judgment». Taylor & Francis Online. The Art Bulletin. 73 (4): 623-640. Consultado em 21 de outubro de 2024 

Ligações externas

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