Oceano cósmico

oceano cósmico ou rio celeste, encontrado na mitologia de muitas culturas e civilizações, representando o mundo ou o cosmos envolvido por águas primordiais

Um oceano cósmico ou rio celeste é um motivo mitológico encontrado na mitologia de muitas culturas e civilizações, representando o mundo ou o cosmos envolvido por águas primordiais.

"O Oceano Cósmico revela Brahma, Vishnu e Shiva

Nos mitos da criação, as águas primordiais são frequentemente representadas como tendo originalmente preenchido todo o universo, sendo a primeira fonte do cosmos dos deuses ou Deus, com o ato de criação correspondendo ao estabelecimento de um espaço habitável separado das águas envolventes.[1] Aparece entre as primeiras vezes na mitologia mesopotâmica antiga como Nammu em sumério, depois como Apsu e Tiamat babilônicos; e como Nun na mitologia egípcia. No Enuma Elish está escrito:[2]

Quando o céu lá em cima ainda não havia sido nomeado / Nem a terra abaixo pronunciada pelo nome,

Apsu, o primeiro, seu gerador / E a criadora Tiamat, que os suportava todos,

Haviam misturado suas águas, mas não haviam formado pastos ou descoberto juncais.

Quando ainda não se manifestaram os deuses / Nem se pronunciaram nomes, nem se decretaram destinos.

Então nasceram deuses dentro deles.

O contato dos povos semíticos no Oriente Próximo com povos mesopotâmicos e egípcios influenciou a concepção israelita de águas primevas,[2][3] e na primeira história da criação na Bíblia há apenas terra e água em um estado desorganizado: "E a terra era sem forma e vazia; e havia trevas sobre a face do abismo; e o Espírito de Deus se movia sobre a face das águas..." (Gênesis 1:2).[4] O mundo também é criado como um espaço dentro da água e, por isso, é cercado por ela: "E disse Deus: Haja uma expansão no meio das águas, e haja separação entre águas e águas." (Gênesis 1:6).[5] Esse abismo de águas é designado pela palavra Tehom em hebraico e no judaísmo e religiões abraâmicas posteriores desenvolveu-se a teologia de que a matéria prima seria coeva com Deus.[6]

Também foi influenciada a mitologia grega, em que algumas versões de teogonias narram os deuses que personificam as águas como os primeiros, o que é visto em Homero na Ilíada 14:201: "Okeanos, origem dos deuses, e mãe Tétis".[7][8] Aristóteles e Platão fizeram referência a essa corrente.[9] Platão, no entanto, afirma no Timeu que o estado pré-cósmico não é formado pelos elementos naturais como tais:[10]

Como afirmamos no começo, todas essas coisas estavam em estado de desordem, quando Deus implantou nelas proporções tanto em relação a si mesmas quanto em suas relações umas com as outras, na medida em que fosse possível para elas estarem em harmonia e proporção. Pois naquela época nada participava disso, salvo por acidente, nem havia qualquer coisa que merecesse ser chamada pelos nomes que agora usamos, como fogo e água.[11]

Plutarco relata que os egípcios atribuem essa doutrina do princípio como a água, encontrada em Tales e Homero, como sendo originária deles:[12]

Eles [os egípcios] acham que Homero também, como Tales, colocou a água como princípio e origem de todas as coisas, depois de aprender com os egípcios; pois Okeanos é Osíris e Tétis é Ísis, pois ela cuida e nutre todas as coisas.

Beroso posteriormente compara a vertente grega com a narrativa babilônica e equivale Omorka (uma forma de título de Tiamat como "Ummu-Hubur", que significa Mãe-Rio do Submundo,[13] ou derivado de "emaruukka", dilúvio[14]) a Thalassa (mar).[15][16]

Oannes disse que houve um tempo em que tudo era escuridão e água, e que nessa água seres estranhos com formas peculiares vinham à vida... Mas isso, ele diz, é falar alegoricamente sobre a natureza, tudo consistia de umidade e criaturas vieram à existência nela[17]

Na mitologia iraniana, Frāxkard (médio persa: plʾhwklt‎, avéstico: Vourukaša; também chamado Warkaš no persa médio) é o nome do oceano cósmico, conforme aparece no Bundahishn.[18] Na mitologia hindu, o conceito aparece como a deusa Danu[19] e seus filhos (Danava), ou como apas (águas).[20][21] O indologista Alain Daniélou afirmou que se encontra nas tradições do hinduísmo:[21]

O mundo é um pensamento divino, uma vibração no substrato causal; portanto, a lua, a mente cósmica, é assimilada às águas causais (ap), das ondas das quais todas as formas tangíveis se desenvolvem.

Na mitologia nórdica segundo a Edda poética, o derretimento de gelo primordial gera todas as criaturas do cosmos, originando a Ymir, de cujo suor surgiu seus ancestrais, e Audumbla, que lambeu o sincelo, dando forma ao humano.

Assim como a parte norte estava congelada, o sul estava derretido e brilhante, mas o meio de Ginnungagap era tão suave quanto o ar em uma noite de verão. Lá, o hálito quente que vinha do norte de Muspell encontrou a geada de Niflheim; e relaram-se e brincaram sobre ele, e o gelo começou a derreter e a pingar. A vida acelerou naquelas gotas, que assumiram a forma de um gigante, chamado Ymir.[22]

A narrativa do Popol Vuh, atribuída aos povos maias quichés, foi registrada como um mito de criação maia que contém referência a águas primordiais:[23]

"A face da terra ainda não apareceu. Sozinha permanece a extensão do mar, junto com o ventre de todo o céu... Tz’aqol e B’itol, Tepeu e Serpente Quetzal (Gucumatz), Xmucane e Xpiyacoc. Luminosos eles estão na água, envoltos em plumagens quetzal e penas de cotinga. Portanto eles são chamados Serpente Quetzal... Que a água seja retirada, esvaziada, para que a placa de terra seja criada".

No espiritismo, é atribuído aos espíritos o conceito de "fluido cósmico universal" ou "fluido universal" como substância fundamental de toda matéria e elemento único que recebe modificações, gerando propriedades do universo como as forças moleculares, a eletricidade e o magnetismo.[24] Em A Gênese é afirmado:

A matéria cósmica primitiva continha os elementos materiais, fluídicos e vitais de todos os universos que estadeiam suas magnificências diante da eternidade. Ela é a mãe fecunda de todas as coisas, a primeira avó e, sobretudo, a eterna geratriz. Absolutamente não desapareceu essa substância donde provêm as esferas siderais; não morreu essa potência, pois que ainda, incessantemente, dá à luz novas criações e incessantemente recebe, reconstituídos, os princípios dos mundos que se apagam do livro eterno.[25]

Ver também

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Referências

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  1. Stiessel, Lena. Skapelsemyter från hela världen. [S.l.: s.n.] ISBN 91-21-14467-2 
  2. a b Fuerst-Bjeliš, Borna (8 de novembro de 2017). Mediterranean Identities: Environment, Society, Culture (em inglês). [S.l.]: BoD – Books on Demand. ISBN 978-953-51-3585-2 
  3. «COSMOGONY - JewishEncyclopedia.com». www.jewishencyclopedia.com. Consultado em 18 de fevereiro de 2020 
  4. «Gênesis 1:2 - ACF - Almeida Corrigida Fiel - Bíblia Online». www.bibliaonline.com.br. Consultado em 18 de fevereiro de 2020 
  5. «Gênesis 1:6 - ACF - Almeida Corrigida Fiel - Bíblia Online». www.bibliaonline.com.br. Consultado em 18 de fevereiro de 2020 
  6. Propp, William H. (14 de outubro de 1993). «Water». In: Metzger, Bruce M.; Coogan, Michael David. The Oxford Companion to the Bible (em inglês). [S.l.]: Oxford University Press. ISBN 978-0-19-974391-9 
  7. López-Ruiz, Carolina (2010). When the Gods Were Born: Greek Cosmogonies and the Near East (em inglês). [S.l.]: Harvard University Press. ISBN 978-0-674-04946-8 
  8. Astour, Michael C. (1967). Hellenosemitica: An Ethinic and Cultural Study in West Semitic Impact on Mycenaean Greece (em inglês). [S.l.]: Brill Archive 
  9. Boys-Stones, G. R.; Boys-Stones, Lecturer in Classics G. R.; Haubold, J. H.; Haubold, Johannes (2010). Plato and Hesiod (em inglês). [S.l.]: OUP Oxford. ISBN 978-0-19-923634-3 
  10. Miller, Dana R. (2003). The Third Kind in Plato's Timaeus (em inglês). [S.l.]: Vandenhoeck & Ruprecht. ISBN 978-3-525-25244-4 
  11. Platão. Timeu 69a
  12. Plutarco. Ísis e Osíris 9-10.354D-E. In Wöhrle, Georg; McKirahan, Richard (29 de outubro de 2014). Thales (em inglês). [S.l.]: Walter de Gruyter GmbH & Co KG. ISBN 978-3-11-031525-7
  13. Abusch, Tzvi; Huehnergard, John; Steinkeller, Piotr (14 de agosto de 2018). Lingering over Words: Studies in Ancient Near Eastern Literature in Honor of William L. Moran (em inglês). [S.l.]: BRILL. ISBN 978-90-04-36955-9 
  14. Schironi, Francesca (2009). From Alexandria to Babylon: Near Eastern Languages and Hellenistic Erudition in the Oxyrhynchus Glossary (P.Oxy. 1802 + 4812) (em inglês). [S.l.]: Walter de Gruyter. ISBN 978-3-11-020693-7 
  15. Gmirkin, Russell (15 de maio de 2006). Berossus and Genesis, Manetho and Exodus: Hellenistic Histories and the Date of the Pentateuch (em inglês). [S.l.]: Bloomsbury Publishing USA. ISBN 978-0-567-13439-4 
  16. Hetherington, Norriss S. (8 de abril de 2014). Encyclopedia of Cosmology (Routledge Revivals): Historical, Philosophical, and Scientific Foundations of Modern Cosmology (em inglês). [S.l.]: Routledge. ISBN 978-1-317-67766-6 
  17. Citação da Babiloníaca de Beroso preservada por Eusébio de Cesareia.
  18. «FRĀXKARD – Encyclopaedia Iranica». www.iranicaonline.org. Consultado em 18 de fevereiro de 2020 
  19. Kinsley, David (1998). Hindu Goddesses: Visions of the Divine Feminine in the Hindu Religious Tradition (em inglês). [S.l.]: Motilal Banarsidass Publ. ISBN 978-81-208-0394-7 
  20. Brown, W. Norman (1942). «The Creation Myth of the Rig Veda». Journal of the American Oriental Society. 62 (2): 85–98. ISSN 0003-0279. doi:10.2307/594460 
  21. a b Daniélou, Alain (dezembro de 1991). The Myths and Gods of India: The Classic Work on Hindu Polytheism from the Princeton Bollingen Series (em inglês). [S.l.]: Inner Traditions / Bear & Co. ISBN 978-0-89281-354-4 
  22. Crossley-Holland, Kevin (31 de outubro de 1996). The Penguin Book of Norse Myths: Gods of the Vikings (em inglês). [S.l.]: Penguin UK. ISBN 978-0-14-193741-0 
  23. Christenson, Allan J. (2003). Popol Vuh: Sacred Book of the Quiché Maya People. Norman: University of Oklahoma Press.
  24. Kardec, Allan (2017) [1857]. O Livro dos Espíritos. Rio de Janeiro: Federação Espírita Brasileira.
  25. Kardec, Allan (1944) [1868]. A Gênese. Rio de Janeiro: Federação Espírita Brasileira