Tirano Banderas é um romance do escritor espanhol Ramón María del Valle-Inclán, publicado em 1926. A obra pertence ao chamado ciclo esperpêntico do autor, iniciado em 1920.

Tirano Banderas, novela de Tierra Caliente
Tirano Banderas
Tirano Banderas, novela de Tierra Caliente
Tirano Banderas, romance de terra quente [PT]
Tirano Banderas [BR]
Autor(es) Ramón María del Valle-Inclán
Idioma castelhano
País Espanha
Gênero Romance
Linha temporal por volta de 1880
Localização espacial Santa Fé de Tierra Firme
Lançamento 1926
ISBN 84-239-7319-0
Edição portuguesa
Tradução Carlos da Veiga Ferreira
Editora Teorema
Lançamento 1990
Páginas 230
ISBN 972-695-111-9
Edição brasileira
Editora Nova Fronteira
Cronologia
Ligazón
La corte de los milagros

O tema do livro é uma revolução que objetiva derrubar o cruel General Santos Banderas, que governa o país tropical fictício de Santa Fé de Tierra Firme, banhado pelo Oceano Pacífico. O período pode ser situado por volta de 1880. Santa Fé de Tierra Firme é descrita como um amálgama de diversas regiões diferentes da América Latina; na obra aparecem mares, montanhas, desertos, pântanos e planícies; lhamas, cavalos e bois; índios, negros, mestiços, criollos e estrangeiros; citam-se festas, trajes e costumes tradicionais de várias regiões diferentes; o texto está recheado de americanismos, cuja origem vai desde a Argentina até o México, país visitado pelo autor muitos anos antes; o tratamento oscila entre tu, usted e vos. Essas alusões às variadas culturas do continente tem o objetivo de mostrar que o autor não fala de um país latino americano em particular, mas de todos ao mesmo tempo.[1][2]

A linguagem se alterna entre culta, coloquial, chula, rebuscada, retórica e oficialesca, conforme o personagem e a situação específica. Aparece um grande número de neologismos. Banderas fala sempre de si na terceira pessoa, como se fosse um mito. O autor também inova na pontuação, com uso consecutivo dos dois pontos (":"), como se estivesse fazendo uma exposição dentro de outra exposição.[2]

Por muitos anos, o romance foi considerado uma obra ímpar, uma experiência única, impossível de classificar por meio dos esquemas existentes da teoria literária, pois combina o tom épico com a crítica social, a franca paródia e situações exageradas e/ou absurdas, a crueldade e o lirismo. Atualmente, é considerada uma obra-prima da literatura pós-modernista [nota 1], e um dos romances mais importantes do século XX em língua espanhola; um romance que se apresenta ao mesmo tempo como uma obra socialmente engajada e uma experiência literária esteticamente perfeita e renovadora.[3]

O romance é narrado na terceira pessoa por um narrador observador. O texto é dividido em sete partes, cada parte é dividida em livros, e cada livro é dividido em pequenos quadros. O autor incluiu também um prólogo proléptico e um epílogo contemporâneo a este. Nas primeiras partes, os diversos personagens vão sendo apresentados e a situação política da república vai sendo descrita por meio do foco da narrativa em alternados ambientes: a fortaleza, o consulado espanhol, o bordel, a prisão, a fazenda, etc.. O conteúdo do texto nunca perde a característica de descrição do caráter dos personagens para centrar-se na sucessão dos eventos da luta revolucionária; estes vão sendo narrados aos poucos até atingir-se o desfecho final. Toda a trama cabe no espaço de tempo de dois dias consecutivos.

A grande unidade de tempo e espaço, o estilo narrativo impessoal, conciso e cheio de diálogos curtos, a ação ininterrupta e as reviravoltas do enredo aproximam a obra a um filme cinematográfico. Pelo conteúdo, é uma fábula, pertencente ao grupo de narrativas que se chamou depois de romance do ditador, das quais são exemplos o Facundo, de Domingo Faustino Sarmiento, O senhor presidente, de Miguel Ángel Asturias e O outono do patriarca, de Gabriel García Márquez.[1]

O livro foi usado como base para um filme dirigido por José Luis García Sánchez, com Gian Maria Volonté e Ignacio Lópes Tarso em 1993: El tirano Banderas.

Enredo

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Enredo principal

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O General Santos Banderas governa com mão de ferro a república de Santa Fé de Tierra Firme, mantendo o povo submisso através do terror. Enfrenta a oposição dos progressistas, que reivindicam que se faça uma reforma agrária, com a concessão de propriedade aos camponeses. Banderas tolera apenas manifestações de oposição tímidas e restritas a recintos fechados. Alguns camponeses já se sublevaram e organizaram guerrilhas no campo. Alguns fazendeiros também desejam sua deposição, embora não se arrisquem a executar nenhum movimento às claras, pois a repressão aos inimigos é sempre violenta. Penas de morte, castigos corporais e humilhações são comuns; a justiça é sumária. Os assessores do tirano também não o apreciam, mas o adulam e obedecem cegamente às suas ordens. A colônia espanhola apóia o tirano, pois ele protege seus interesses econômicos em troca de financiamento, que é usado para manter de pé a estrutura repressiva. Os representantes diplomáticos desprezam tanto o povo local quanto a Banderas, mas seus governos formalmente apóiam o tirano.

O Coronel Domiciano de la Gándara conspira em silêncio, mas o general desconfia dele há tempos. Uma tarde, bêbado, comete um pequeno delito, o que fornece ao General um pretexto para prendê-lo. A ordem de prisão é expedida secretamente, mas no mesmo dia, à noite, quando conforme seus hábitos, visita o bordel da cidade, o Coronel é avisado por uma prostituta clarividente da ameaça que pesa sobre ele, e foge. O Coronel de la Gándara procura, então, o amigo Filomeno Cuevas, um dos fazendeiros que vêm se organizando para depor Banderas. Filomeno o abriga em sua propriedade e planeja mandá-lo ao encontro dos grupos guerrilheiros, mas seus sentinelas avisam que o governo já havia despachado uma patrulha no encalço de de la Gándara. Filomeno decide, então, alçar-se também em luta, levando junto com ele seus peões.

Os diplomatas estrangeiros posicionam-se com dubiedade frente à situação do país. O encarnecimento da luta provoca o aumento da repressão por parte do General, o que suscita preocupações humanitárias, mas ao final o corpo diplomático consegue produzir apenas um documento tíbio de recomendações ao governo, que nem mesmo uma crítica explícita contém. O legado da Espanha, o Barão de Bernicalés, mantém total neutralidade: nada faz para derrubar o tirano nem atende aos pedidos de dinheiro para financiamento da defesa.

Ao final, Banderas percebe que será derrotado, mata a punhaladas sua filha louca e aparece à janela, onde é alvejado pelos atiradores inimigos. Seu corpo é retalhado e espalhado pelos quatro cantos do país.[1]

Enredos secundários

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Ao lado do enredo principal, caminham enredos secundários que têm a função de completar a caracterização dos personagens e da situação do país. Um dos enredos secundários envolve o Ministro Plenipotenciário da Espanha, o Barão de Bernicalés. Outro envolve o artesão Zacarias San José. São dois personagens que não fazem parte do círculo próximo ao tirano, mas cuja história ilustra o comportamento das classes sociais que não estavam envolvidas diretamente no conflito.

O Barão procura a todo custo manter a neutralidade de seu país, apesar das pressões do governo e da colônia espanhola. O General busca meios de fazê-lo comprometer-se com sua causa e fornecer-lhe o dinheiro de que precisa para manter-se no poder. As tentativas de sensibilizá-lo, feitas pelo enviado do tirano, Dom Celes Galindo, falham e Banderas pede ao Inspetor Salamanca que investigue a vida pessoal do diplomata. Um dia, a polícia prende o toureiro Currito Mi-Alma por homossexualismo, e ao revistar sua casa descobre cartas que revelam que ele é amante do Barão. Segue-se uma tentativa, ainda feita pelo intermédio de Dom Celes, de chantagear o diplomata, que falha graças à frieza e à habilidade deste.

Zacarias San José é um ceramista que vive com a esposa e o filho recém-nascido em seu rancho, alheio à efervescência dos acontecimentos do momento. Abriga o Coronel de la Gándara em fuga, e o conduz de canoa até a fazenda de Filomeno Cuevas. O Coronel, face à extrema pobreza do amigo, dá a seu anel de brilhante, para que o penhore e consiga dinheiro para alimentar o garoto durante a ausência do marido. Na loja de penhores, o anel é reconhecido pelo proprietário, Quintín Pereda, que conclui que ele teria sido roubado do Coronel. Em vista disso, toma-o da mulher, sob ameaça de denunciá-la à polícia, e obriga-a a aceitar por ele um valor muitíssimo inferior ao real. Pouco depois, ao saber que de la Gándara é agora um fugitivo da lei, denuncia a mulher de Zacarias San José à polícia. os policiais vão ao rancho e prendem a camponesa, impedindo-a de levar o filho com ela. Ao voltar da fazenda de Cuevas, Zacarias encontra os restos do corpo do filho, que havia sido morto e devorado pelos porcos e pelos urubus. Dirige-se então à cidade, onde se embebeda e informa-se a respeito da mulher. Ao saber que ela havia sido presa por denúncia de Pereda, vai em busca de vingança. Após enforcar Pereda e arrastá-lo em seu cavalo pela cidade, volta à fazenda de Filomeno Cuevas, disposto a aderir à revolução.[1]

Personagens

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General Santos Banderas - O tirano, herói da luta pela independência, é frio e cruel. Com a mesma indiferença ordena fuzilamentos e observa o ceú com sua luneta, manda chantegear diplomatas e brinca do jogo da rã.[nota 2] Demonstra ternura, no entanto, com sua filha louca.

Celestino Galindo - Ou Don Celes, rico gachupín (ou seja, espanhol de nascimento), faz a ponte entre o tirano e os interesses da colônia espanhola.

Abílio de Valle, prefeito da cidade, e Coronel López de Salamanca, chefe de polícia - Executores principais das ordens do tirano.

Barão de Bernicalés - Embaixador espanhol, o principal diplomata estrangeiro em Santa Fé.

Coronel Domiciano de la Gándara - Oficial do regime, conspira em silêncio. Após, bêbado, quebrar alguns copos na venda de Dona Lupita, fornece o pretexto para a sua prisão pelo tirano.

Filomeno Cuevas - Fazendeiro que organiza a oposição dos pares ao governo.

Roque Cepeda, político de oposição, e Sánchez Ocaña, advogado - Principais intelectuais da rebelião.

Nacho Veguillas - Advogado próximo ao tirano que cai em desgraça por suspeitarem de ter revelado a de la Gándara que este seria preso.

Zacarias San José - Artesão que dá abrigo a de la Gándara em sua fuga, conduzindo-o à fazenda de Cuevas. Na sua ausência, a esposa é presa polícia e o filho recém-nascido, deixado para trás, é devorado pelos porcos. Mata o delator, Quintín Pereda, e associa-se aos revolucionários, levando como talismã os restos do filho morto.[1]

Análise

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Estrutura

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Em geral, o engajamento político é estranho às obras das vanguardas artisticas. De modo a obter um alto grau de acabamento e/ou inovação do ponto de vista estético, os autores optam por O grande mérito de Tirano Banderas é ter conseguido a fusão de ambas.

O objeto do livro não é relatar ou romancear os eventos de uma determinada revolução ou ditadura, e sim examinar o processo de dominação em si. O autor lança mão de técnicas sofisticadas para transcender tempo e espaço particulares e atingir o universal. A mais abstrusa é, provavelmente, a estrutura do romance, considerada a sua divisão em partes e livros: a parte central, de número 4, possui 7 livros; as outras partes possuem 3 livros cada; prólogo e epílogo possuem apenas um livro cada um. Essa organização está ilustrada na tabela abaixo.

Parte Prólogo Parte 1 Parte 2 Parte 3 Parte 4 Parte 5 Parte 6 Parte 7 Epílogo
Livros 1 3 3 3 7 3 3 3 1

Se cada um dos livros de cada parte for marcado de acordo com a aparição ou não de Banderas na narrativa, tem-se a seguinte estrutura:

Parte Prólogo Parte 1 Parte 2 Parte 3 Parte 4 Parte 5 Parte 6 Parte 7 Epílogo
Livro 1 não sim não não não não sim sim sim
Livro 2 não não não não não não não
Livro 3 sim sim não não não não sim
Livro 4 não
Livro 5 não
Livro 6 não
Livro 7 não

As tabelas acima evidenciam a complexa estrutura que o autor criou:

  1. Cada segmento à esquerda corresponde a um segmento à direita: prólogo corresponde a epílogo, parte 1 corresponde à parte 7, e assim por diante;
  2. Alguns segmentos apresentam simetria com relação ao segundo livro, outras não; os segmentos que não apresentam essa simetria formam pares que coincidem com o emparelhamento acima;
  3. Nos pares de segmentos que não apresentam simetria com relação ao segundo livro (prólogo/epílogo e parte 2/parte 6) acontece inversão com relação ao atributo de presença de Banderas na narrativa.
  4. O centro da estrutura coincide com o centro geométrico do livro: o livro 4 da parte 4.

A simetria invertida da estrutura aparece também no conteúdo. Por exemplo, no livro 3 da parte 2 (A orelha da raposa), o General congratula o Inspetor Salamanca pela prisão do opositor Roque Cepeda após um comício, e recomenda que "não tema exceder-se" no tratamento a ser dispensado ao prisioneiro; no livro 1 da parte 6 (Lição de Loyola), que é o correspondente simétrico na estrutura, o General visita Dom Roque na prisão, pergunta ao carcereiro se ele estava sendo tratado com a devida consideração e oferece a mão ao prisioneiro, que a recusa com ironia. Esse par de episódios fornece uma imagem em pequena escala da imagem principal do romance: a reviravolta na sorte de Santos Banderas.

Essa reviravolta na fortuna do tirano reflete-se na mudança da força motriz dos acontecimentos. A ação começa muito centrada em Banderas: as pessoas gravitam em torno do tirano, odiando-o, temendo-o, adulando-o ou evitando-o. A partir do meio do livro, são os revolucionários que provocam os eventos, e o General passa a apenas respondes a eles.

O centro geométrico do livro, o livro 4 da parte 4 (O honrado gachupín) narra a visita de Quintín Pereda à delegacia para denunciar Zacarias San José e a consequente prisão da esposa deste; tais eventos resultaram depois na morte do bebê, na violenta vingança do Cruzado e na sua adesão à causa da revolução. Não é o acontecimento decisivo da história, mas provavelmente aquele com a maior intensidade emocional.

A simetria também está presente com relação a determinados pares de personagens. Por exemplo, a ex-prostituta Lupita, que vende limonada na rua e a prostituta Lupita, que trabalha no bordel. O General crê que a primeira possui poderes divinatórios; quando ela se queixa do Coronel ter quebrado alguns de seus copos, fornece-lhe o pretexto que precisava para mandar prender o suposto traidor; a segunda avisa o Coronel do perigo que corre, depois de ler os pensamentos de um cliente.[3][4]

Visões diferentes

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Os diferentes personagens ilustram as diferentes concepções de mundo e as diferentes reações à ditadura: o cinismo e o amoralismo do círculo próximo a Banderas, o idealismo dos intelectuais, os códigos de honra e as superstições das pessoas mais simples.[1]

Esperpentos

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São exemplos de esperpentos presentes no livro:[3]

  1. A desumanização de alguns personagens: Banderas e seu círculo de assessores são excessivamente cruéis e frios; o comerciante Pereda é incrivelmente desleal e ganancioso.
  2. Estranhezas, como a transformação de um antigo convento em fortaleza e as similaridade entre as duas Lupitas;
  3. A presença de personagens caricatos, como o mesmerista alemão Michaelis Lugín, a prostituta clarividente Lupita a Romântica, a vendedora de sucos Dona Lupita e o licenciado Nacho Veguillas.
  4. A literaturização da linguagem coloquial, aqui tomada de todas as partes da América Latina.
  5. A presença contínua da morte na narrativa.
  6. A mensagem de crítica social.

Ver também

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Ligações externas

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  1. Ou expressionista, como alguns classificam as obras do ciclo esperpêntico.
  2. Jogo tradicional em que os participantes atiram discos de ferro ou bronze, tentando fazer com que caiam em buracos feitos em um tabuleiro horizontal de madeira; alguns dos buracos são protegidos por obstáculos; um dos buracos, o mais difícil de se acertar, é a boca de uma rã. Chamado juego de la rana na Espanha e no Chile, juego de sapo no Peru e na Argentina, tiro al sapo na Bolívia e simplesmente rana na Colômbia (conforme «Información General "Juego de la Rana"» (em espanhol)  Parâmetro desconhecido |fechaaceso= ignorado (ajuda)

Referências

  1. a b c d e f Rosa de Labastida. Estudo introductorio in Ramón del Valle-Inclán (2008). Tirano Banderas (em espanhol) 2 ed. Quito: Editora Libresa. ISBN 8423973190 
  2. a b Ramón del Valle-Inclán (1977). Tirano Banderas. Traduzido por Newton Freitas 1 ed. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira 
  3. a b c Robert C. Spires. «Transparent simulacra: Spanish fiction, 1902-1926» (em inglês). Consultado em 5 de janeiro de 2011. pp. 90 
  4. Elizabeth Rush. «Interpretive coups and tyrannical views: Shocking the understanding in Tirano Banderas» (em inglês). Consultado em 7 de janeiro de 2010